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TV e o Vídeo Independente no Brasil

 

A realização de um estudo sobre a produção videográfica no Brasil passa necessariamente pela identificação do perfil de seus produtores, do seu tipo de financiamento e dos recursos utilizados. Observamos que em sua grande maioria, como mostraremos a seguir, as obras são o resultado do trabalho obstinado de realizadores, apaixonados pela ideia de criar e ousar. Mesmo quando as condições são completamente desfavoráveis. Localizamos nosso material de pesquisa dentro do que chamamos “vídeo independente”, produzido com recursos quase sempre escassos e alheios a objetivos institucionais, embora por vezes contando com apoio logístico e equipamentos provenientes de instituições de apoio ou de projetos ligados a instituições de ensino. Ademais, não podemos deixar de salientar que a televisão aberta brasileira sempre demonstrou certa resistência a processos alternativos de produção cultural, bem como a elementos transgressores em seus quadros. Desse modo, desde cedo houve os rigores da censura, sob o regime da Ditadura Militar, da década de 1960 até o período de distensão, no governo do General Figueiredo.

 

É em clima de desenvolvimentismo e entre disputas políticas que se estrutura a televisão no Brasil, quando começa a trajetória da linguagem videográfica nacional. Implantada em 1950, pelo empresário paraibano Assis Chateaubriand, já dono de uma rede de jornais e rádios, a televisão nasce sob o signo do improviso em nosso País; sequer havia uma programação para o dia seguinte ao da inauguração. Mesmo diante do estudo mercadológico que encomendara a uma companhia americana, apontando os aspectos negativos do incipiente mercado brasileiro para empreitada de tal envergadura, Chateaubriand deixou prevalecer o espírito empreendedor e associou a sua impetuosidade ao discurso de cunho nacionalista1. Isso resultou em mais de uma década de condições bastante adversas para a produção de televisão. Ainda inexistiam na TV brasileira os padrões rígidos de produção e veiculação de mídia; a falta de uma programação estruturada inclusive levava a serem veiculados até 40 minutos de publicidade comercial entre um programa e outro. Os anunciantes transformaram-se em verdadeiros produtores de cultura de massa, ao terem associados aos nomes de seus produtos os próprios programas em si. As agências de publicidade encarregavam-se de escrever, produzir, contratar elenco e até mesmo completar os salários dos funcionários das emissoras, reservando a essas o simples papel de transmissoras da mídia pronta. Nessas condições, eram realizados programas como o Teatro Goodyear, a Telenovela Mappin, o Recital Johnson e o Rádio Melodia Ponds, entre outros. Em um esforço heróico para sustentar e desenvolver a televisão brasileira, os anunciantes se tornaram os protagonistas de uma inversão nos papéis entre vendedores de mercadorias e produtores de mídia de um veículo de comunicação de massas2.

Concentradas nas mãos do Poder Executivo, as concessões de TV são regulamentadas em 1962, e continuam servindo aos interesses políticos dos governantes, especialmente após a Ditadura Militar, que se instala no país a partir de 1964. Com a criação da Embratel, em 1965, a televisão brasileira abre caminho para as transmissões via satélite, o modelo das grandes networks presentes nos países desenvolvidos, as redes de transmissão que unificariam todo o Brasil, até o ano de 1972, através da ligação ao satélite Intelsat. A maior beneficiária nesse processo é a TV Globo, como recompensa pelos serviços que prestava aos militares no poder. A Rede Globo, sob a proteção do Presidente Castelo Branco, consegue firmar uma associação com o grupo americano Time-Life, contrariamente ao disposto nas leis brasileiras, que proíbem a associação de grupos nacionais de comunicação a grupos estrangeiros, e dispara na corrida pela hegemonia televisiva, rumo a uma televisão de padrão técnico, administrativo e mercadológico nunca vistos no Brasil3. A Constituição de 1988 pouco altera esse quadro, face ao caráter vitalício das concessões, perpetuando sua dependência ao Executivo.

O que se observa é que, com o Golpe Militar (1964), especialmente após a edição do AI-5 (1968), intensificam-se os processos de controle do Estado sobre a programação televisiva, restando que toda e qualquer tentativa de se produzir inteligência crítica na TV brasileira se transformava em ato heróico e fadado ao extermínio; restava aos interessados em trabalhar com vídeo e a fazer televisão, enquanto forma de expressão cultural, apenas o campo da experimentação plástica independente, normalmente realizada entre pequenos círculos de artistas e expositores de galeria, sem qualquer tipo de apoio para veiculação na TV aberta.

Com o surgimento das câmeras portáteis, acopladas a gravadores Portapack (Sony), de rolo de 1/2 polegada, a partir de 1965, abre-se um universo de possibilidades para a atividade videográfica, inclusive como alternativa expressiva para artistas e produtores independentes. Mas as primeiras experiências brasileiras com vídeo independente, fora dos circuitos das emissoras comerciais, e sintonizadas com a produção de videoarte mundial, só acontecem a partir do início dos anos 70.

Talvez hoje o mais antigo registro ainda visualizável seja o vídeo M3x3, uma coreografia registrada em vídeo pela TV Cultura de São Paulo, em 1973, concebida pela bailarina Analívia Cordeiro – filha de Waldemar Cordeiro, o pioneiro artista brasileiro da chamada arte eletrônica –, que era o resultado de suas experiências com a Computer dance for TV. Analívia realizou também outros trabalhos naquela época, Gestos (1974), Cambiantes (1976), ambos originalmente gravados em 16mm e depois telecinados, em que pesquisava as interseções entre dança e arte eletrônica, trabalho que desenvolve até os dias de hoje4.

Surgidas mais em função da necessidade de os artistas plásticos buscarem novos suportes, como já o faziam com a fotografia e o cinema, os primeiros trabalhos ainda não se enquadravam exatamente no que hoje entendemos por vídeos, enquanto obras acabadas. Sua existência estava ainda dependente de um conjunto de significação mais abrangente; não se trabalhava a questão da imagem eletrônica em si. Normalmente o uso do vídeo estava integrado a outros meios plásticos de expressão. Se em países desenvolvidos os primeiros videoartistas encontraram apoio em laboratórios de instituições universitárias, estações experimentais de TV, o auxílio de engenheiros e programadores, e contaram ainda com a existência de algumas galerias de arte com suporte para os sistemas de exibição, por aqui o processo era extremamente diverso dessa realidade. A produção nacional era prejudicada pela inexistência de equipamentos, recursos e locais de exibição. Essas dificuldades acabaram por marcar fortemente o tipo de trabalho desenvolvido.

É através da iniciativa do diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP, Walter Zanini, que é realizada a primeira exposição com as experiências brasileiras envolvendo o vídeo enquanto meio expressivo. Zanini recebe do Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia (EUA), em 1974, um convite para selecionar uma série de trabalhos para a exposição internacional "Vídeo Art", organizada por Suzanne Delehanty, a se realizar na Filadélfia, em janeiro e fevereiro do ano seguinte. A partir dessa proposta pioneira formaram-se à época dois grandes núcleos, em torno dos quais se aglutinaram artistas e produtores: um grupo de cariocas ligados ao Museu de Arte Moderna do Rio, que conseguira equipamento emprestado (de Jom Tob Azulay, diplomata que estudava cinema em Los Angeles – EUA, e que acabara de trazer um equipamento Portapack (Sony) dos Estados Unidos, colocando-o à disposição dos artistas a partir de 1974)5, e outro de paulistas, em torno de um equipamento Sony, adquirido pelo Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, em 1977, por iniciativa de Zanini. Embora já tivesse ocorrido uma exposição de vídeo num museu brasileiro, no próprio MAC-USP, em 1973, com a apresentação de Registro do Passeio Sociológico pelo Brooklin, do artista algeriano Fred Forest, como parte do segmento Arte e Comunicação na XII Bienal, é com a histórica exposição 8ª JAC – Jovem Arte Contemporânea do MAC (1974) que se contempla a produção local que surgia, conforme nos informa Cacilda Teixeira de Castro, Coordenadora do Setor de Vídeo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1977 e 786.

As produções da época são em sua maioria o registro de gestos performáticos dos artistas, ainda sem explorar as possibilidades expressivas do meio em si. Em função da falta de recursos, editava-se diretamente na câmera durante a gravação, ou então eram gravados planos contínuos, muitas vezes em tempo real. Entre os principais realizadores, alem dos que já citamos anteriormente, e que merecem a designação de pioneiros, podemos citar vários nomes: Letícia Parente (1930-1991), Marca Registrada (1974), De Aflictibus (1979), Nordeste (1981) – esta artista em um de seus trabalhos mais perturbadores bordou a expressão "Made in Brazil" na própria planta dos pés; Ivens Machado, Escravizador – Escravo (1974), Dissolução (1974), Versus (1974) – escultor e gravador; Miriam Danowski, A Procura do Recorte (1977); Paulo Herkenhoff, Estômago Embrulhado (1975); Antônio Dias, Musical Piece (1971), Two Music Models on the use of Multimedia (1974) – cujas obras foram realizadas quando o artista estava em Milão, com amplas condições de produção, e não no Brasil; Ana Bella Geiger, Declaração em Retrato (1974), Passagens (1974) – uma artista de projeção internacional, que estende para a videoarte a sua veia irônica e crítica; Fernando Cochiarale, Chuva (1980); Regina Váter, Vídeo Dolorido (1982); e destaque para os trabalhos de Sônia Andrade, A Morte do Horror (1981) – que realizou desde 1974 dezenas de experimentos de curta-duração, tendo atingido o maior nível de maturidade em sua geração7. Algumas dessas obras vieram a se constituir na primeira mostra de vídeo solo de um artista: 8 Vídeos de Sônia Andrade, no MAC-USP.

Destacam-se, entre os pioneiros, os instigantes trabalhos de José Roberto Aguilar, Where is South América? (1975), The Trip (1975), Lucila, Filme Policial (1977), Raio de Luz (1978), Divina Comédia Brasileira (1981), Contra-Sonho de uma Cidade (1981) – misto de artista plástico, músico e performer. Realizadas entre 1975 e o início dos anos 80, essas obras trazem a síntese do experimental, com longos planos, apresentações performáticas, tudo editado com cortes secos e fita adesiva. Aguilar havia trazido do Japão, em 1974, o seu próprio equipamento, e manteve certa independência. Nessa época, ele trocou o trabalho com a pintura pelas pesquisas com o vídeo. Devido a forte ligação com a música pop (Aguilar e Sua Banda Performática), é impulsionado a realizar concertos performáticos de videoarte, em que dois gravadores e dois monitores são utilizados, apresentando sincronizadamente diferentes imagens, numa dialogia que revela o estado da arte da criação com vídeo brasileiro naquele momento, no Brasil8.

Entre os anos 1977 e 1978, o MAC-USP realizou diversas exposições e mostras de videoarte9: A inaugural 7 Artistas do Vídeo contava com trabalhos de Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Letícia Parente, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff e Sônia Andrade, em referência ao grupo que participara da exposição na Filadélfia, Pensilvânia-EUA, em 1975. Seguiram-se outras mostras, na série chamada de Vídeos no MAC, com apresentação de obras de Aguilar, Gabriel Borba, Norma Bahia e Rita Moreira, Jonier Marin (Videopost10), artista colombiano radicado em São Paulo, e ainda de mostras de trabalhos canadenses. A última apresentação do setor foi VídeoMAC, que envolveu trabalhos de Carmela Gross, Gabriel Borba, Ivens Machado, José Roberto Aguilar, Julio Plaza, Letícia Parente, Regina Silveira, Sônia Andrade e Marcelo Nitsche. Após a desativação do setor de vídeo do MAC-USP, em 1978, é realizado ainda um último evento, no Museu da Imagem e do Som: o I Encontro Internacional de Vídeo-arte, organizado por Marília Saboya e José Roberto Aguilar – na apresentação, Walter Zanini laconicamente pergunta: “A vídeo-arte no Brasil? Ela existe?”

É fundamental citarmos aqui o grupo de produtores paulistas aglutinados em torno de Roberto Sandoval, que com sua escola de artes (Aster) e de sua produtora (Cockpit) deu vazão a uma série de trabalhos criativos e instigantes. Em Aleatório (1982), o ritmo frenético da edição brinca com cenas editadas em paralelo, associando o estrangulamento de uma galinha a uma cena banal de cabeleireiro. No vídeo Matemágico (1983), o autor desvela uma coreografia de um artista de circo, através da decupagem11 dos movimentos originais. Dignas de menção são também as suas inovações de enquadramento em Foram Sete Quedas São (1982). Do grupo ligado a Sandoval, destacam-se as presenças de Julio Plaza, Sônia Fontanezi, Mary Dritschel, e especialmente Regina Silveira, autora de Sobre a Mão (1980), A Arte de Desenhar (1980) e Morfas (1981), vídeo este que altera a escala de observação para objetos comuns como escovas de dentes, pentes e sabonetes, emprestando-lhes uma fisionomia estranha. Outro artista paulista é Artur Matuck, que produziu a maior parte de seus trabalhos nos Estados Unidos, boa parte deles com as temáticas ecológica e política; em 1981, Artur fez Ataris Vort in the Planet Megga (primeira versão – haveria ainda uma outra versão preparada para a 17ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1983). Na linha antifigurativa, merecem crédito as obras Meditação no Espaço (1981), Profeções da Memória (1981) e Figuras de Umbral (1981), todas de Otávio Donasci, produzidas utilizando efeitos de feedback em monitores transformados e processamento de imagens convencionais em laboratório.

Fora do eixo Rio-São Paulo, um nome que não pode ser esquecido é o de Rafael França, gaúcho, que dá continuidade nos anos 80 ao projeto estético dos pioneiros (simplicidade formal, uso moderado de tecnologia, participação do próprio realizador na imagem, autoexposição pública), e que realiza a maior parte de sua produção em Chigago-EUA, para onde vai estudar e lecionar. Toda a sua obra revela um tom pessoal e aborda, de forma dramática, a condição da homossexualidade. França foi vítima da Aids e morreu em 1991, depois de nos ter presenteado com um dos testemunhos mais autênticos de fidelidade a si próprio. Em seu vídeo Prelúdio de uma Morte Anunciada (1991), apresenta um autêntico testemunho sobre os últimos dias antes de sua morte, revelando a sua própria agonia frente à doença, que o consome. Outro nome importante é o do pernambucano Paulo Bruscky, um pioneiro na aplicação artística de várias tecnologias, como gravação eletrônica, projeção de diapositivos, fac-símile, filme super-8, vídeo, xerox, off-set e mimeógrafo, além de entusiasta promotor da mail art no Brasil12.

Com a popularização dos videocassetes caseiros, lançados em 197613, videomakers passaram a contar com um aliado tecnológico, que apontava para a independência dos meios convencionais de televisão, e que permitia vislumbrar um universo de possibilidades de distribuição alternativa; mas considerando-se o restrito círculo de apreciação das obras desses pioneiros, e ainda a falta de empenho da maioria de seus autores em divulgá-las, são hoje ainda praticamente desconhecidas, e uma parte do que foi produzido naquela ocasião já nem existe mais. Ademais, o imenso poder hegemônico alcançado pela televisão comercial brasileira na área de entretenimento e cultura ignorou solenemente essas propostas, e manteve longe das telas toda uma geração de criadores. Restava às gerações futuras reverter esse nefasto quadro.

Paralelamente a um declínio do cinema brasileiro de invenção e de intervenção crítica, causado pelo aumento dos custos de produção e ao desmantelamento da estrutura amparada no Estado (personificada na figura da Embrafilme), verificamos uma enorme expansão do mercado televisivo a partir de meados dos anos 8014. Nesse processo, assistimos ao surgimento de equipamentos de imagem eletrônica com um nível de qualidade superior e com preços bem mais convidativos15 aos jovens produtores, que começavam então as suas carreiras. O ritmo veloz, a linguagem fragmentada, a versatilidade, e um número crescente de recursos abriam novas possibilidades a essa geração, que crescera junto à TV, e que já se habituara à linguagem do vídeo.

Essa nova geração de produtores de vídeo, chamada de independente, estava interessada em mostrar as suas propostas irreverentes e renovadoras de concepção televisiva por meio do sistema comercial e aberto (broadcasting) de TV. E procurava atingir a grande massa de telespectadores através da “telinha”, contrariamente aos herméticos e seletos grupos de artistas da geração anterior. Suas inquietações buscavam novas formas de utilização da imagem eletrônica, despertando para a função cultural e crítica da televisão, dentro de um espírito vanguardista que engendrasse um processo de inversão da relação de autoridade estabelecida entre produtor e consumidor, dominante nos meios convencionais da televisão comercial.

Apesar da resistência das grandes emissoras, a criatividade e o senso de humor, presentes nesse novo modo de olhar e de fazer televisão dos independentes, acabam por penetrar e influenciar a própria programação comercial das emissoras. Por meio de pequenas redes e de emissoras locais, como a TV Gazeta de São Paulo, os independentes espalham um pouco do seu espírito anárquico em propostas renovadoras como os programas dos grupos TVDO e Olhar Eletrônico. Em realizações como Teleshow de Bola (1983) e Quem Kiss TV (1983), o que se observa é uma inversão na estrutura dos espetáculos, mostrando-os pelo avesso; ao invés do concerto de rock ou jogo de futebol, o que se vê em evidência são as personagens incidentais, como os vendedores ambulantes, os fãs, a torcida, os cambistas e populares. Aproxima-se de um certo realismo grotesco16, invertendo a realidade objetiva com o uso da paródia, da obscenidade, do cinismo, denunciando a relatividade da ordem estabelecida e os seus valores. Em sua concepção, são utilizados recursos que remetem ao universo da videoarte, com uma forte referência à estrutura dos videoclipes, em que não lhes faltam colagens de estilos, imagens dissociadas, mosaicos heterogêneos e processos de ruptura conceitual. Sucessos de público realizados pela Rede Globo nos anos 80, como Armação Ilimitada e TV Pirata, não seriam possíveis sem as intervenções desses pioneiros.

Na trilha do grupo Olhar Eletrônico, segue-se um conjunto de obras transgressoras, como o antidocumentário Caipira In (1987), de Roberto Sandoval, Tadeu Jungle e Walter Silveira, em que a intervenção do sujeito enunciador se faz crítica em relação a si mesma, denunciando a impossibilidade de se chegar ao outro de forma isenta, mostrando a distância que separa o sujeito e seu objeto e a tomada de consciência dessa distância. Nessa linha de inversão no discurso, do sujeito e seu objeto, temos um excelente trabalho, realizado por Marcelo Machado, Renato Barbieri e Paulo Morelli chamado Do Outro Lado de Sua Casa (1986). Esse vídeo enfoca o cotidiano de um grupo de mendigos marginalizados pela sociedade. Durante a realização das gravações, os indigentes passam a determinar os rumos a serem seguidos, e chegam a assumir o microfone e a direção das entrevistas.

Inúmeras são as produtoras surgidas na década de 80, e mais numerosos ainda são os produtores e suas obras, marcando um grande crescimento do chamado vídeo independente. A partir desse momento, diversos festivais e mostras se multiplicam pelo país, embora carentes de maior divulgação, de popularidade, regularidade, e de recursos, naturalmente. Um dos mais importantes é o ainda ativo Festival Videobrasil, realizado bianualmente pelo SESC, há mais de 30 anos, em São Paulo. As produções em vídeo passam a ocupar nas escolas de arte e de comunicação o espaço do experimentalismo, que antes foi ocupado pelo cinema. A sua popularização faz parte do processo de crescimento e amadurecimento da imagem eletrônica, em seus vários segmentos. Como um reflexo do já citado processo de absorção da produção independente pela TV comercial, também observamos o aumento proporcional de interesse das novas gerações pelas possibilidades expressivas nessa mesma TV convencional, que também passa a abrir espaço em sua programação para as novas estéticas digitais. A geometria fractal17 e sua aplicação na criação de realidade virtual computacional passa a embalar as mais diversas criações cinematográficas, gerando efeitos mirabolantes de inimaginável realismo, e vai paulatinamente chegando ao alcance de produtores independentes, artistas e videodesigners.

Por outro lado, com o desenvolvimento e a entrada de novos equipamentos, de custo mais acessível, e mesmo com a ajuda crescente da computação gráfica, uma nova modalidade de audiovisual passa a frequentar o antes restrito e marginal circuito da produção videográfica independente. Esses trabalhos vão originar a partir dos anos 90 a chamada The bit generation, termo cunhado pelo estudioso Arlindo Machado em sua publicação sobre o assunto, Made in Brazil – três décadas do vídeo brasileiro18, em que narra e mostra boa parte da saga desse meio, desde os experimentalistas dos anos 70 até os trabalhos produzidos até o início do século XXI, já carregados de tecnologia e brindados com a facilidade de produção , manipulação, armazenamento, e principalmente com as possibilidades de divulgação em âmbito planetário, trazidas pela banda larga, de alta capacidade de transmissão de dados, da Internet. Obras instigantes como Vídeo-cabines São Caixas Pretas (1990) e Parabolic People (1991), da carioca Sandra Kogut reúnem uma coleção de pequenos depoimentos, mensagens ou performances de pessoas comuns, gravados em várias partes do mundo, por meio de câmeras colocadas no interior de cabines fechadas, instaladas em lugares públicos, em que as pessoas podem supostamente ficar em isolamento total. A obra ganha relevância devido aos excelentes recursos computadorizados de pós-produção, da dinâmica de montagem e finalização, que levam à construção de um mosaico de textos e imagens fragmentadas e recombinadas; um jogo de múltiplos sentidos.

Outro produtor que segue na contramão do modo tradicional de se construir e perceber a mensagem videográfica é o artista Éder Santos, mineiro. Sua radicalidade atinge pontos altos com as obras Não Vou à África porque Tenho Plantão (1990) e Essa Coisa Nervosa (1991), em que uma interferência deliberada sobre o dispositivo técnico – alteração do sincronismo vertical dos quadros – provoca a oscilação das imagens durante todo o tempo, tornando difícil, quase impossível ao espectador a sua visualização. Já em Janaúba (1993), o artista tenta recuperar aspectos perdidos da linguagem audiovisual, inspirando-se na obra Limite (1931), de Mário Peixoto.

Na linha de poética visual, vale destacar os trabalhos do poeta e músico Arnaldo Antunes, ex-líder do grupo de rock Titãs, que lança em 1993 um livro-fita com 30 videopoemas de requintado acabamento computacional, trazendo a síntese perfeita entre vídeo, música, texto e imagens animadas, um passo além no sentido da fusão dos meios expressivos.

Trouxemos aqui elementos que permitem uma visão geral sobre a trajetória do suporte vídeo e seu uso criativo até o início do século XXI. Encerramos aqui nossa narrativa. Deixamos a era web para uma nova etapa.

 

 

 

Referências:

 

 

1) ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural, 3 ed., São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991, p.59.

2) ORTIZ, 1988, op. cit.

3) PRIOLLI, Gabriel et al., 1985, op. cit.

4) Disponível em:<https://www.youtube.com/channel/UCUVlr6yUgN2RR7LH-RFYG5g>. Acesso em: 15 mar 2018.

5) "Ninguém sabia o que ia acontecer com aquilo tudo, era tudo uma dificuldade. O que houve foi o seguinte, eu soube de uma pessoa que tinha vindo de Los Angeles naquele ano, 1974, que tinha estudado cinema lá, essa pessoa é o Jom Tob Azulay, e ele estava trazendo o que na época, não sei se era a última palavra, não sei dizer, mas era um Portapack da Sony, a máquina era de 1969, acredito que em 1974 já tinha outras máquinas, mas provavelmente não era tão simples. O Portapack pesava uns 40 kg, então ele tinha que ser carregado uma noite inteira para poder dar meia hora de função externa. Ligado na eletricidade, tudo bem... mas se fosse função externa, nem meia hora aguentava. Então era uma série de dificuldade." Depoimento da artista Anna Bella Geiger, em março de 2003, no Rio de Janeiro, ao pesquisador Leandro Vieira. Disponível em:<http://www.fig.br/edart/0/leandro.htm>. Acessado em: 07 out.2005.

6) CASTRO, Cacilda T. Testemunho Sobre A Vídeo-Arte no Brasil. XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte – 2 a 6 Set 2003, 9 pp.

7) MACHADO, 1993, op. cit.

8) Id., 1993, op. cit., p.60-62.

9) COSTA, Cacilda Teixeira, 2003, op. cit.

10) Trabalho intermídia envolvendo artistas de vários países, em que os roteiros eram recebidos pelo correio e realizados no MAC.

11) Estudo e análise dos elementos materiais constituintes de uma cena, como tipo de plano, posição de câmera, tipo de lente, ângulo de enquadramento, tipo de iluminação, organização espacial etc.

12) Disponível em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/arttec/index.cfm?

fuseaction=Detalhe&CD_Verbete=5956>. Acessado em: 09 out. 2005.

13) O sistema VHS (video home system) passa a ser comercializado a partir de 1976, pela JVC e pela Panasonic.

14) SOUZA, José Inácio de Melo. A Morte e as Mortes do Cinema Brasileiro. Dossiê do Cinema Brasileiro. Revista USP, n 19, 1993, p.54.

15) MACHADO, Arlindo. A Experiência do Vídeo no Brasil. Máquina e Imaginário, EDUSP, 1993.

16) MACHADO, 1993, op. cit., p.257.

17) Embora ainda pouco conhecido, o polonês de origem lituana Benoit Mandelbrot já havia lançado, em 1977, sua bíblia sobre a estrutura da geometria fractal  - The Fractal Geometry of Nature, após anos e anos de observação e estudos.

18) MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

19) Há muito tempo a produção de uma animação prescinde totalmente da existência de uma câmera para ser realizada; basta ter um software de modelagem e animação em 2D ou 3D, num computador razoável, e a indispensável criatividade para se obter um resultado satisfatório.

 

 

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