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Vídeo e Criatividade
A relação entre o meio tecnológico televisivo e o seu aproveitamento enquanto possibilidade de significação tem sido particularmente muito frutífera. Basta verificarmos a história da videoarte e a interação entre os realizadores e fabricantes de câmeras portáteis, de tubos de imagem e de videogravadores.
Antes mesmo de as primeiras câmeras de vídeo, acopladas a gravadores, serem colocadas no mercado para comercialização, a partir de 1965, alguns artistas mais inquietos já trabalhavam de forma experimental com os monitores de TV e sua textura granulada de imagem eletrônica, alterando os circuitos para explorar novas possibilidades expressivas.
Em 1963, o coreano Nam June Paik, considerado o “Pai da Videoarte”, realiza a sua primeira videoescultura em uma exibição, a Exposition of Music--Electronic Television, na Alemanha. Muitas outras se seguiriam: a famosa sessão Distorted TV Sets, em Wuppertal, e ainda a TV Buddha, TV Clock, Positive Egg etc.
Citamos também outro pioneiro, o artista alemão Wolf Vostell, que no mesmo ano de 1963 grava Sun in Your Head, em que registra as imagens distorcidas de aparelhos de TV.
Ambos faziam parte do Fluxus, um revolucionário grupo novaiorquino de performers e artistas vanguardistas, liderados por George Maciunas. Desse grupo, participavam ainda Joseph Beuys, Allan Kaprow, Yoko Ono e o músico Karlheinz Stockhausen, alguns dos mais conhecidos.
Da união de Paik com o japonês e engenheiro de vídeo Shuya Abe nasceriam, em 1969, os primeiros sintetizadores de imagem e colorização, que deram grande impulso ao desenvolvimento da videoarte.
Não é incomum o fato de a experimentação artística abrir caminhos aos avanços da indústria eletrônica. Basta lembrarmos que Benoit Mandelbrot, matemático que desenvolveu a geometria fractal, e assim a batizou, trabalha há anos como pesquisador no MIT (Massachusetts Institute of Technology), assim como tantos outros precursores em pesquisas na área de tecnologia da imagem eletrônica.
O termo fractal surgiu da mistura entre o adjetivo fractus, próprio do verbo frangere (latim), quebrar, fraturar, e as derivações inglesas fracture e fraction. O termo formulado por Mandelbrot em 1975 representava uma resposta aos anseios de nominação para uma espécie de geometria da natureza que ele descobria: “No fim, a palavra ‘fractal’ passou a representar uma maneira de descrever, calcular e pensar sobre formas irregulares e fragmentadas, recortadas e descontínuas – formas que vão das curvas cristalinas dos flocos de neve até as poeiras descontínuas das galáxias.”1
A respeito do encontro entre arte e tecnologia, fenômeno que presenciamos na contemporaneidade, achamos pertinente trazer algumas palavras do pesquisador e professor Arlindo Machado: “Pode-se afirmar que a arte deste século encontra-se numa relação de simetria com o saber de seu tempo, tal como esteve a arte clássica grega em relação à geometria euclidiana, ou a dos séculos posteriores em relação à cosmologia medieval. O próprio conhecimento científico parece também viver agora o seu state of art, libertando-se de uma realidade objetiva absoluta e determinista e passando a governar-se, por exemplo, pelas mesmas noções de caos e acaso com que opera o artista.”2
Devemos considerar nesse estudo as questões relativas à distinção entre vídeo e televisão, e analisar também os seus contextos e inevitáveis imbricações, mesmo que tal distinção se torne cada dia mais difícil de ser mantida. Embora a estrutura de transmissão televisiva tipo broadcasting3 ainda mantenha o seu poder de penetração, especialmente em países do chamado Terceiro Mundo, esse modelo monolítico de TV já sente a ação das diversas alternativas em andamento, que são as televisões comunitárias, as várias opções de TV por assinatura – ainda que restritas a uma parcela da população mais abastada –, as TVs universitárias, bem como a poderosa ação da Internet, através da webtv4 e de outras possibilidades. O mote em gestação é a chamada convergência das mídias existentes.
A esclarecedora classificação de René Berger5 pode nos ser útil para avaliar a relação entre a televisão e o vídeo em um contexto pré-web. Ele distingue três grandes campos de experiência televisual – a macrotelevisão, a mesotelevisão e a microtelevisão.
No primeiro caso, são englobadas as grandes redes de televisão comerciais e estatais, que se beneficiam das estruturas de transmissão por meio de ondas eletromagnéticas, e que se dirigem às grandes massas. Elas são de característica unidirecional, em que é mantida a hegemonia dos grandes transmissores, a quem não se pode responder – de longe, são o mais poderoso meio de comunicação de massa conhecido.
Num segundo estágio, temos um modelo intermediário, da mesotelevisão, identificado pelo autor com as TVs por assinatura e suas variantes, ainda abarcando todas as modalidades de televisões locais de pequeno alcance, voltadas a atender um público diferenciado, em que haveria o diálogo, num relacionamento de interlocutores. São o que nós identificaríamos hoje como as chamadas TVs Interativas.
Finalmente, chegamos ao terceiro modelo, da microtelevisão. Trata-se ela da TV dos pequenos grupos qualitativos, reunidos por interesses comuns. Ela é de certa forma restrita a circuitos fechados de produção e veiculação. Esses envolveriam desde grupos políticos ativos até experimentações mais radicais de linguagem, no campo da videoarte.
Segundo Berger6, o barateamento e o acesso a equipamentos de qualidade com alta portabilidade poderiam provocar “profundas modificações na estrutura da comunicação eletrônica, pois eles praticamente colocam a possibilidade de produzir e mostrar programas, se não nas mãos de todos, pelo menos nas de uma quantidade de pessoas infinitamente maior do que aquela que monopoliza a macrotelevisão”.
Podemos afirmar que, malgrada a péssima distribuição de renda em países mais atingidos pelos efeitos da economia capitalista, essa afirmativa representa hoje uma real possibilidade, principalmente com as tecnologias colocadas pela Internet. Podemos citar algumas iniciativas pioneiras na divulgação de vídeos no Brasil: Festival Anima Mundi, Festival do Minuto, Festival VideoBrasil, Porta Curtas Petrobrás, Curta o Curta, Curtagora, Programa Curta Brasil, da TVE/Rede Brasil, projeto DOCTV, da extinta Radiobrás (EBC). Hoje assistimos ao crescente número de páginas e canais que surgem diariamente na Internet, e que veiculam produções raramente divulgadas nos circuitos convencionais e comerciais de televisão. A quantidade de canais que surge diariamente no Youtube e no Vimeo é gigantesca, mas grande parte dela é efêmera, não tem qualidade ou se perde em meio ao mar de informações despejado por milhões de usuários.
O panorama pós-web traz, naturalmente, inquietantes especulações sobre o futuro da televisão, com conceitos ainda em construção. Abre-se um vasto campo de estudo.
A partir das atividades de pesquisa no campo expressivo da videoarte7 no início dos anos 60, podemos identificar um paradigma no uso que as vanguardas fizeram do cinema no início do século XX. Naquele momento, encontramos artistas como Hans Richter, Man Ray, Marcel Duchamp e Fernand Léger, que exaltam o uso do cinematógrafo como importante instrumento de uma nova arte8, e se empenham em produzir filmes que alargam os horizontes do cinema, explorando o universo de possibilidades estéticas para a imagem dinâmica.
Assim colocada, a apropriação de novas tecnologias pela arte de vanguarda do início do século XX vai muitíssimo além do deslumbramento com a técnica, conforme era empregada por cineastas muito mais envolvidos com uma estética de efeitismo e consumo, que levaram a um esgotamento da linguagem, tais quais o francês George Méliès, Cendrillon (1899), A Trip to the Moon (1902) – chamado de “mágico da tela”; o inglês James Williamson, The Soldier's Return (1902), Wait till Jack Comes Home (1903) – conhecido com o precursor do gênero western norte-americano; e o também britânico Cecil Hepworth, Rescued by Rover (1905), That Fatal Sneeze (1907).
É relevante observarmos, quando consideramos a questão relativa à utilização dos recursos tecnológicos como extensão criativa, que a importância das vanguardas se deve menos aos processos radicais de ruptura do que à exploração das possibilidades expressivas dos meios enquanto linguagem. Tanto a fotografia como o cinema, e depois a televisão, representam tecnicamente transformações que permitiram novos aportes em relação aos sistemas de distribuição e circulação de imagens, o que por si já implicava em novas e grandes possibilidades para os artistas. Além de que, na prática, sempre houve ampla ligação entre as artes visuais e as pesquisas técnicas de representação do real, como nos comprova a história da arte.
Não é difícil constatar que entre os primeiros fotógrafos inúmeros eram pintores9. Na utilização que os artistas fazem dos recursos técnicos oriundos da fotografia, do cinema e do vídeo, frequentemente observamos uma busca por novas definições do campo visual e cognitivo, normalmente de caráter crítico, e nisso reside o seu valor, pois torna a indagação estética vanguardista referência em quaisquer pesquisas no campo audiovisual.
Quando artistas futuristas, dadaístas e cubistas lançaram mão do cinematógrafo, entusiasticamente10, para compor as suas obras, o fizeram no intuito de alargar os horizontes de significação da estética cinematográfica. Na prática, as experimentações que levaram à estruturação da linguagem narrativa no cinema já estavam definitivamente reunidas e solidificadas em filmes como The Battle of Elderbush Gulch (1913) e The Birth of a Nation (1915), ambos de D.W. Griffith. Além de redefinirem o papel do diretor de cinema como coordenador de fotógrafo, dos atores e da montagem, esses filmes consolidam a figura do narrador, que “através da organização das imagens, expõe um ponto de vista, modula a emoção, argumenta, coloca o espectador na condição de observador ideal dos fatos.11
Destacamos a diferenciação criada entre as vias comerciais da televisão e o caminho das possibilidades expressivas experimentais empreendidas pelos artistas do vídeo, como já havia acontecido com o cinema. Embora historicamente seja atribuída à televisão a culpa pelos males que afligem o cinema, numa postura um tanto apocalíptica, segundo o estudioso Arlindo Machado12, caracterizando-a como o território do banal dentro do universo audiovisual, é inegável verificarmos toda uma produção que atesta rica colaboração entre a televisão, o cinema e os meios eletrônicos, quer seja em âmbito internacional, ou mesmo dentre produtores brasileiros, numa via de mão dupla em que todos ganham.
Basta relacionarmos alguns dos inúmeros trabalhos realizados para a TV por cineastas como Jean-Luc Godard, Ici et Alleurs (19740, Comment Ça Va (1975), Numéro Deux (1975); Michelangelo Antonioni, Il Mistero di Oberwald (1981), Face a Face (1976); Alfred Hitchcock, Alfred Hitckcock Presents, The Alfred Hitchcock Hour, Suspicious e Four Star Time, séries produzidas para a TV, entre 1955 e 1966; Ingmar Bergman, A Flauta Mágica (1975); Federico Fellini, Ensaio de Orquestra (1978); Rainer Werner Fassbinder, Berlin Alexanderplatz (1980).
Entre os brasileiros, vale destacar os irmãos Walter Salles, Chico ou O País da Delicadeza Perdida (1989); e João Moreira Salles, Jorge Amado (1992), Poesia é Uma ou Duas Linhas (1989), Atrás Uma Imensa Paisagem (1989); Cacá Diegues, Veja esta Canção (1994); Domingos de Oliveira, Separações (2002), Feminices (2004), Carreiras (2005) – sem esquecermos a passagem meteórica de Glauber Rocha pelo programa Abertura, na TV Tupi, no final da década de 197013.
Aliás, o que observamos é que ocorreu o estabelecimento de uma simbiose, em que a captação e a edição de imagens em formatos digitais viabilizou inúmeros projetos cinematográficos – antes inviáveis, por exemplo, em função do crescente aumento do preço das películas e da baixa qualidade na captação de imagens eletrônicas dos equipamentos mais antigos.
Mesmo quando se observa a relação entre a estrutura de linguagem e as técnicas, também o diálogo tem enriquecido a ambos, e é comum vermos enquadramentos e posturas de televisão sendo usadas no cinema, e vice-versa, com ótimos resultados.
Como exemplo, citamos o filme brasileiro Cidade de Deus (2002), do diretor Fernando Meirelles, reconhecido pelo seu trabalho com vídeo experimental e pelas participações na produção das séries televisivas TV Mix (1987-1990) e Castelo Rá-Tim-Bum (1994).
Referências:
1) GLEICK, James. Caos: A Criação de Uma Nova Ciência, 4 ed, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1991, p. 108.
2) MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário, São Paulo, EDUSP, 1993, p. 25.
3) Sistema de difusão, através do qual se propagam as ondas utilizadas pela transmissão televisiva e radiofônica, que caracteriza o sistema aberto de recepção do sinal dos canais de TV e rádios.
4) Com a integração das tecnologias de compactação e transmissão de dados de imagem e som em formatos digitais, a integração das mídias através da Internet não conhece limites.
5) Apud MACHADO, in MACHADO, Arlindo. Notas Sobre uma Televisão Secreta, in LIMA, Fernando B., PRIOLLI, Gabriel, 5) MACHADO, Arlindo. Televisão e Vídeo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p.55.
6) Apud MACHADO, 1985, op. cit., p.56.
7) ”A utilização que os artistas fazem do vídeo não respeita a convenção do vídeo como meio de grande comunicação; o vídeo é antes, na pesquisa dos artistas, utensílio eficaz de uma nova definição, frequentemente crítica, do visível que incorpora som e tempo no processo de ordenamento e análise da imagem”, in FAGGONE, Vitorio, Vídeo frente a Vídeo, in ARISTARCO, Guido (Org.). O Novo Mundo das Imagens Eletrônicas, Lisboa, Edições 70, 1990, p.110.
8) FAGONNE, in ARISTARCO, 1990, op. cit., p.111.
9) BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. In Obras Escolhidas, Vol I, São Paulo, Ed Brasiliense, 1985.
10) MARINETTI, et al. The Futurist Cinema 1916. In APOLLONIO, Umbro. Futurist Manifestos, Thames and Hudson, 1973. p.207.
11) XAVIER, Ismail. D.W. Griffith – O nascimento de um cinema, São Paulo, Ed Brasiliense, 1984, p.49.
12) MACHADO, Arlindo. O Diálogo Entre Cinema e Vídeo. Dossiê do Cinema Brasileiro. Revista USP, 1993, p.124.
13) Programa Abertura, criado por Fernando Barbosa Lima e Carlos Alberto Lofller na extinta TV Tupi, em 1979, e apresentado pelo cineasta Glauber Rocha.
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